sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A Máscara do Grotesco: Poetas a Serviço do Mal durante o Nazismo

Leonardo Valesi Valente é poeta, terapeuta de formação, dedica-se ao postulado da ausência – seu meio de produção de linguagem e estética perante o vazio da vida, esse tão intransponível de se dizer.
  
A Poesia, como expressão de lirismos e subversão linguística, está para o belo assim como a palavra está para a manifestação do humano. O desenvolvimento ontológico do ser humano, a partir do que nos reconhecemos nós, deu-se a partir de experiências em que pela liberação de um polegar oponente o bicho-homem foi capaz de subir às árvores, buscar comida, descer e transmitir cultura. Ou seja, daí a palavra deslocou-se essencialmente o motor de manifestação e registro do humano, às voltas do pertencimento da linguagem e da participação subjetiva de sua própria vida num meio social.

“A tinta e o lápis
Escrevem-se todos
Os versos do mundo”
João Cabral de Melo Neto, “O Poema”

Mais tardiamente, o invento da Poesia serviu para dar cabimento ao sem lugar do onírico, do inventivo, daquilo que as palavras por si só não deram conta de contar tudo. A todo o momento que um poeta inventa o verbo, reinventa o alcance de seu dizer, outro mundo é concebido a partir do que era nada, do que não existia, do que passou a figurar eternamente enquanto aquele verso seja lido, seja expandido ao acesso de outros.

Etimologicamente temos em Poesia a origem da palavra “criação”. É possível também remeter ao termo grego original “poiésis” como significante de relações de “produção, de fazer”. Daí a construção estar legitimamente ligada ao modo de produção humana, no sentido que a palavra disponibiliza veículo para que a linguagem seja por excelência um invento próprio do humano, isso que seja anti-natural, nada nativo e sim a maior transgressão humana: o verbo.

“Um poema como um gole d’água bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre
                                 [na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa
                                  [condição de poema”
Mario Quintana, “O Poema”

Do uso de refrão, de rimas, de formas de memorizar através da repetição, o humano logrou pontes para a comunicação de seus valores artísticos, cívicos, nacionalistas, ideários e inclusive bélicos. Uma contradição aparentemente inconcebível nos desloca o olhar: como pensar em poesia e fazer uso para justificar a guerra, o horror, o massacre? É exatamente sobre isso que proporemos uma reflexão a partir dos poetas a serviço do Nazismo que se consagraram pela Poesia.

Antes façamos um resgate emblemático de o porquê o belo seja tão valorosamente marcado em nossa cultura pós-moderna como elemento primordial da Poesia. Poderia citar autores das mais diversas escolas discursivas, mas opto pelo verso do poeta pantanense que nos informa sobre a matéria de trabalho para a Poesia:

“Aliás é também objeto de poesia
saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória

As coisas sem importância são bens da poesia”
Manoel de Barros, “I. Matéria de Poesia”

No período nazista, cuja ideologia se pautou marcadamente pela crença inquestionável da supressão do mais fraco pelo eleito, pelo tido como digno de elogio, massacrou-se e dizimou-se um numerário de pessoas, livros, crenças e discursos aos quais a palavra inconcebível faça questão de caber a isso que seja do imponderável para a linguagem: o horror como motivo do indizível.

Pronunciaram-se nesse momento, os poetas Heinrich Anacker (1901-1971), Will Vesper (1882-1962), Adolf Bartels (1862-1945), Rudolf Binding (1867-1938), dentre outros. Esses inomináveis prestaram desserviço não só à Poesia, quanto à humanidade, estando todos disponíveis à Queima de Livros (Büchervebrennung) que marcou um olhar do mundo para os antepassados da Idade Média quando se queimava também as bruxas nas praças públicas. Esse ato libidinoso de queimar seria a concreção de um ideal bárbaro de negação contra todo e qualquer registro de belo que não fizesse elogio ao espírito alemão. Produziu-se daí catálogos e listagem do que poderia ser lido e o que seria digno de destruição, como práticas de vigília e acepção por parte dos nazistas – esses imbuídos do controle e da manutenção de ideias de superioridade a partir do massacre dos demais.

Foram daí execradas as produções de autores como: Wilhelm Lehmann e Gertrud von le Fort. Na contrapartida instituiu-se A Câmara de Cultura do Reich, que além de ditar a propaganda oficial do ideário nazista ainda difundia as obras de poetas e autores a serviço do massacre ideológico do sistema. É possível visualizar a aberração destes fatos no cinema, em especial na obra 1984 George Orwell.

Como repercussão, temos ainda uma lista de livros e escritos que reproduzem tal lógica nazista a desserviço da Poesia, dentre os mais expoentes citemos: “Horch auf Kamerad (1935; “Escuta camarada”), de Hans Baumann, Des Blutes Gesänge (1934; “Canções do Sangue”), de Herbert Böhme, Im Marschschritt der SA (1933; “No compasso da SA”), de Herybert Menzel, e Das Lied der Getreuen (1938; “A canção dos leais”), de Franz Schauwecker” citados por Elcio Loureiro Cornelsem*, em seu excelente artigo de revisão sobre o mesmo tema desse nosso artigo.

Poemas que se tornaram evidentes a partir do Nazismo, sendo esses figurados ainda como emblemáticos para neonazistas são: “A Guarda do Reno”, por Max Schneckenburger e “Apelo”, por Theodor Körner, que serviram como ferramenta para consagrar termos identitários da ideologia de massacre nazista, ainda em voga no que tange o serviço do Mal: “vontade de luta”, “Reno Alemão”, “pátria”, “nós”, “a mãe”, dentre outros. As palavras a partir daí deslocam de sua função inventiva, célebre no advento da Poesia, para demarcarem um registro de reprodução de discursos sustentadores da ideologia da supremacia nazista.

Na contramão, para finalizar nosso comentário aqui na Sala de Conversa, vamos dar voz a Bertold Brecht que, em meados da Primeira Guerra Mundial, já elegia a Poesia como desdobramento de seu pacifismo antimilitarismo:

“As unhas do meu pé crescem, vistosas,
agora que já não são mais cortadas.
Só preciso de botas espaçosas,
pra não gemer nas minhas caminhadas”

Brecht para personificar o Mal e localizá-lo em termos de cidade, de espaço, disso que possamos vir a nos habitar, cria um neologismo “Mahagonny” que nos serve de ponto final para isso que a Poesia possa ter sido usada contra o humano, para isso que a Poesia venha se deturpar contra ao que tão bem serviria para sempre: o bem da humanidade e de todos nós que somos permeados pela palavra para viver.

“Perguntei pra mim mesmo: que tipo de frieza
baixou sobre esses desgraçados?
Quem os levou à torpeza?
Quem os fez baixar o nível?
Vocês precisam ajudá-los, rápido, coitados.
Se não, vai acontecer algo que vocês acham impossível”...
Berltol Brecht

Despeço-me com um desejo de que a Poesia se nomeie na edificação do Belo, no invento disso que o humano se cura pela palavra, assim se eternize. Espero que tempos execráveis de quando a Poesia tenha servido ao Mal não sejam esquecidos, para nos ensinarem tudo o que não mais criar, mentir ou justificar em nome Dela.

*Link:


3 comentários:

  1. Há muitas questões a serem faladas deste texto tão bem construído. realmente uma excelência de linha de pensamento e argumentos.

    Uma coisa interessante do Nazismo, o qual hoje todo alemão tem vergonha de falar é Hitler ter sido eleito. Eles votaram nele, eles acreditavam naquilo que ele estava fazendo. O que dizer dos poetas que o seguiam a serviço de uma ideologia própria. Por mais que tenha servido ao "mal" não se pode fechar os olhos para eles e buscar além das palavras hoje, de nosso olhar, vis.

    Assim foi na Rússia quando diversos artistas tiveram que seguir cartilhas para ter seus trabalhos considerados como arte, ter suas publicações aceitas como teorias. Tudo devia seguir a lógica de pesquisa e construção imposta pelo estado. Mesmo assim, muitos importantes conceitos e obras foram produzidos.

    Tudo deve ser olhado dentro do contexto e com cuidado, e longe de discordar de uma palavra do que disse aqui. Tudo passa por seus momentos tenobrosos como o cinema e seu "Nascimento de uma nação" que definiu regra e linguagens para o cinema, com um conteúdo preconceituoso e condenável.

    A arte está entre a luz, a escuridão e a transgressão e jamais poderemos ser totalmente justos.

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  2. Texto fantástico!! Parabéns Leonardo!!

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  3. Realmente, belíssimo texto. A história serve para valorizar o presente.

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